Ah, os amores…

Não me sinto mais órfã no amor. Como se tivesse sido parida para ser infeliz nas relações.

Flay Alves
NEW ORDER
5 min readJun 14, 2020

--

Fotografia: Raul Luchese

Nunca tive um namorado. Todavia, amei muitos homens.

Ou melhor, tive um. O primeiro e único. Durou três semanas. Eu tinha 17 anos e nosso romance não continuou por proibição da minha mãe. Na época ela teve receio de que eu perdesse o foco nos estudos ao adentrar no universo dos amores.

Depois disso, me fechei para relações. Por completo. Só voltei a tocar num homem anos depois, por volta dos 23.

Sério? Mesmo. Foram seis anos de muito medo. Eu me sentia feia, era muito tímida, mal tinha dado o primeiro beijo.

Medo, medo, medo. Assim fui para vida e para o mundo.

A parte engraçada? Após tanto anos de recolhimento, o que veio à tona foi um vendaval de paixões, rompantes e ilusões. De todos os tons.

O intelectual carinhoso. O business man charmosão. O trintão português. O venezuelano viajante. O taurino masterchef. O espanhol sedutor. O argentino caliente.

[…] Quantos amores… Em pensar que um dia me questionei se minha sina era ser infeliz nos relacionamentos.

Boa parte dessa sensação se dissolveu em dois momentos da minha existência.

O primeiro momento foi ao ler um texto de Giovana Xavier no Instagram falando sobre parceria. Nele, ela desnudou uma constante nos meus relacionamentos. Disse o seguinte:

“Fui uma mulher MUITO AMADA pelos homens que autorizei que entrassem em minha vida. Cada um à sua maneira, queria que tivesse dado certo. […] Entretanto, eles fizeram muito pouco para que seu querer tornasse-se realidade. É aí que o machismo vence. No escasso ou nulo investimento que homens fazem para mudar e superar seus limites.”

Revisitando minhas várias paixões, pude reconhecer essa vontade do outro em fazer dar certo. Um desejo real, porém debilitado.

Reconheci também minha inabilidade em deixar o outro entrar de fato na minha rotina e projetos de vida, algo que descobri na terapia.

“É que para um relacionamento acontecer, temos que dar um assento para o outro, ceder um lugar para ele na nossa vida”, disse-me a psicóloga. Quando ouvi isso, minha cabeça bugou, confesso.

Sei lá, sempre tive tantos medos, estava tão apavorada em fracassar na escrita, que nunca pensei nisso.

Dar ao outro um lugar na minha vida? Como se faz isso?

Nem posso enumerar as tantas vezes que, ao estar num 1º encontro com o crush, desandava a descrever quão maravilhoso seria o futuro, quando estivesse em outro canto do planeta sentada numa cafeteria, tomando cappuccino e escrevendo livros. Obviamente, sempre contava isso em 1ª pessoa do singular. Nunca no plural.

O segundo momento — de estalo interno — foi no Dia dos Pais de 2019, quando recebi uma mensagem da minha irmã, emocionada ao ler um texto meu sobre nosso pai. Ela chorou ao perceber que, diferente dela, eu não tinha memórias dele, pois era muito criança quando do seu falecimento.

Pôs-se então a contar como era nosso progenitor e ao final disse: Não sei se sabe, mas ele queria muito ser pai. Fomos filhas muito desejadas. Ele amava muito a gente.

Ele amava muito a gente. Essa frase me acertou em cheio.

Ele, minha ancestralidade preta, era um homem e pai afetuoso. Dar-me conta disso me curou de tal maneira que ainda não consigo precisar.

Desde então, muita coisa mudou aqui dentro. Não sinto mais abandono ou preterimento.

Não me sinto mais órfã no amor. Como se tivesse sido parida para ser infeliz nas relações.

Em verdade, desde que abri os olhos e aterrissei no mundo, fui muito amada. Extremamente amada, tenho que admitir. Pela família, pelos amigos, pelos homens, pelas mulheres, pelos livros, pelas praias, pelas montanhas, pelas cachoeiras, pela vida.

Por tudo isto, sou imensamente grata às minhas ancestrais.

Por terem lutado incansavelmente para que eu chegasse até aqui, sã e salva. Para que o presente fosse este momento, em que enfim falo do amor romântico a partir de uma perspectiva que não se restrinja à palmitagem ou à solidão da mulher negra.

Obviamente, esses dois fantasmas também se fizeram presentes na minha história.

Na maioria das vezes mesclados e até mesmo camuflados em atitudes machistas dos meus parceiros ou, pasmem, em discursos pomposos sobre amor moderno ou liberdade sexual, quando na prática não passavam de mera tentativa de objetificação.

Mas, este nem é o X da questão. O grande ponto desta partilha é: para além disso tudo, para além dos danos e machucados que o racismo e o machismo me causaram, existe um ser humano.

Sim, existiu e sempre há de existir um ser humano pleno aqui dentro. Com medos e bloqueios plurais e, ainda bem, possibilidades múltiplas também.

Talvez por isso as discussões dos últimos tempos tenham me afetado tanto. Semana passada cheguei a chorar.

Entrei no banheiro, me olhei no espelho e desabei. Chorei por toda essa dor e bagunça existencial que esses descompassos sociais — machismo e racismo — me trouxeram. Chorei para essa dor acabar.

Chorei para que um dia a diversidade dos nossos corpos, da nossa cor, gênero e orientação sexual não seja um impeditivo ou elemento definidor dos nossos enredos amorosos.

Em mim habita uma ânsia irrefreável pela inteireza da vida.

Eu quero ser inteira, sabe? Para mim, por mim. Afinal, como dar ao outro um assento se mal sei qual é o meu lugar no mundo? Pois é.

Para ser dois é preciso, antes de mais nada, ser um por inteiro.

E assim estou. Me inteirando. Hoje, ao meditar, quis me abraçar. Este talvez seja o primeiro Dia dos Namorados que não me sinto só. O lá a coitada que nunca teve um namorado na vida. Hoje rio dessa sensação, mas já doeu bastante.

Mas agora já não. Hoje me sinto uma, em plenitude e potência.

Não sei o que ocorreu, se foi ter parido meu primeiro livro, se foi a volta para casa e a reintegração no meu sistema familiar, ou a decisão por abraçar o mundo sem culpa. Não sei. Mas hoje me sinto uma.

E você? Já encontrou seu lugar no mundo?

P.S: Se você esperava um desfecho triste para essa história, desculpe desapontá-lo. Já não posso te oferecer isto. Já há um tempo escolhi ser feliz. E este será o meu legado para gerações posteriores de mulheres e homens pretos que estão por vir. O direito ao riso. O direito de amar e permitir-se ser amada.

Feliz Dia dos Apaixonados!

Sou Flay Alves, escritora que percorre o mundo fazendo voluntariado e expedições literárias e compartilha vivências e reflexões sob a ótica de uma viajante mulher, negra e nordestina. Acompanhe meus relatos diários no IG.

--

--

Flay Alves
NEW ORDER

Escritora e jornalista antirracista, feminista e itinerante. Autora de Donas de Si. Escrevo sobre a potência da vida e o encanto de ser gente. Insta flay.alvess