Cicatrizes

Sobre as marcas que a vida nos imprime e aprender a amar nossa própria história.

Flay Alves
NEW ORDER
3 min readJul 24, 2020

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Fotografia: Raul Luchese

Eu tenho uma cicatriz no rosto e ela foi o tema maior da minha primeira sessão de psicanálise.

É impressionante como facilmente alienamos nossa trajetória de vida e nos prendemos a capítulos específicos da nossa história.ㅤ

Por muito tempo, em especial na infância e adolescência, deixei de ser uma pessoa que tem uma cicatriz e me tornei uma cicatriz que tem um pessoa.

Me deixei ser sequestrada por aquela tarde de 2003. Estava na quinta série e fui passar férias na casa dos meus padrinhos. Lá chegando, eles tinham um cachorro que, dias antes, teve sua orelha cortada pelo vizinho.

O animal, obviamente, estava na defensiva. Mas eu, uma criança, não me atentei para isso.

Certo dia, brincando na cozinha, decidi fazer carinho nele. A mão foi justamente na orelha e ele, instintivamente, me mordeu. No rosto. Na boca.

O que se sucedeu a partir dali foi um corre corre sem fim. Enquanto minha madrinha lavava meu rosto, o sangue escorria sem parar. Às pressas chamaram uma ambulância e me levaram ao hospital.

Eu tinha 13 anos. Nos poucos segundos que meu padrinho me deixou a sós, decidi me olhar no espelho. Até hoje não lembro da imagem ao certo, mas sei que a arrastei no meu imaginário por anos a fio.

A cicatriz, de alguma maneira, forjou muito do meu caminho.

Demorei a dar o primeiro beijo porque na minha cabeça nenhum rapaz iria querer namorar uma menina que tem uma cicatriz na boca.

Fotografia: Raul Luchese

Veio a insegurança, veio a timidez e junto dela um mergulho nos livros. Encontrei refúgio na literatura. Dos livros, vieram a escrita. Da escrita, a faculdade. Da faculdade, a vida nômade. Da vida nômade, o autoconhecimento que me trouxe até aqui.

Mas essa foi a parte boa. E os danos?

Veio também a baixa autoestima. As defesas da mente. Um corpo que sempre diz não. Diz não para o afeto, diz não para o outro, às vezes diz não até para si mesma. Diz não para o colo e para as carícias, diz não. Por instinto de proteção.

Ainda hoje busco maneiras de melhorar essa comunicação corporal. Especialmente nos relacionamentos afetivos senti na pele, diversas vezes, essas retrações súbitas de um corpo que está sempre na defensiva.

Tal como o cachorro que um dia me mordeu. Mas agora sou eu quem mordo e, quando necessário, faço cara feia e começo a ranger entre os dentes.

Na defensiva é bom. Ninguém te fere, ninguém te atinge.

Na defensiva do quê, afinal? Do bullying talvez. Daquele corredor de rapazes que se formava no Ensino Médio e que assobiava para as bonitas e fazia chacota das feias. Por isso, também para me proteger, comecei a chegar atrasada nas aulas. Não queria ganhar o certificado de feiura.

Confesso que, ainda hoje, quando me olho no espelho e vejo beleza nos contornos, nos risos e nas nuances deste corpo, me assombro.

Logo eu, bela? Demorei a entender, por exemplo, que meu riso era encantador. Tive que ouvir diversas vezes do outro para dar como certo de que sim, eu poderia sorrir largamente. Era bonito.

Para mim, a grande ironia é que justamente da boca venham os dentes e que deles venha o riso e que tudo isso esteja estampado num rosto onde jaz uma cicatriz.

Como pode isso? A parte que mais amo em mim mesma é também a que mais me causou dor?

“Paradoxos, Flay. A vida é feita disso.” Essa foi a deixa da minha psicanalista.

Sou Flay Alves, escritora que percorre o mundo fazendo voluntariado e expedições literárias e compartilha vivências e reflexões sob a ótica de uma viajante mulher, negra e nordestina. Acompanhe meus relatos diários no IG.

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Flay Alves
NEW ORDER

Escritora e jornalista antirracista, feminista e itinerante. Autora de Donas de Si. Escrevo sobre a potência da vida e o encanto de ser gente. Insta flay.alvess