Tudo vira poesia

Ainda sou aquela garota buscando a própria voz

Flay Alves
3 min readOct 24, 2020
Registro de um fim de semana no meio do mato, buscando recuperar a sanidade mental, emocional e espiritual

Quantos processos internos vividos nos últimos dias. Sinto uma confusão mental e uma clareza no campo do sentir. Me dei conta de que há tempos não escrevo para mim mesma. A cada ideia que surge o ímpeto é dividir com o outro. Mas determinadas reflexões são tão minhas, que as leio em voz alta e partilhar com o mundo desvirtua a intimidade delas.

Quando escrevo, ouço vozes. Ouço o que quero dizer, o que o mundo quer ouvir, o que as pessoas dizem ser tendência. Ouço tudo de uma vez só. Como pode isso? Que a intencionalidade por trás da mensagem possa sabotá-la? E que, ao ter consciência de que me tornei uma escritora publicada, isso possa confundir minha mente e falsear minha escrita?

Ainda sou aquela garota buscando a própria voz. Ainda sou aquela garota perdida em devaneios e imaginações. E não tenho a menor pretensão de deixá-la partir porque talvez estar perdida seja a parte mais bonita de mim.

Num mundo com tantas certezas, estar perdida é um luxo, um privilégio para poucos. Parafraseando Conceição Evaristo: Quando escrevo, sangro. Sinto um soco no estômago que me causa dores lancinantes que se espalham pelo corpo inteiro e me dizem onde, afinal, estou ferida por dentro.

Quando escrevo, respiro fundo enquanto as lágrimas correm pelo meu rosto. É talvez quando me permito estar vulnerável. Enquanto digito sobre a tela, a busca por sentido se alastra pelo meu ser e cada coisa encontra seu lugar de um jeito mágico. Não mágico, mas como se fosse uma espécie de bruxaria.

Eu senti falta disso. De escrever sem saber porquê. Apenas para sobreviver. Enquanto ouço uma música que me lembra que eu ainda não o esqueci por completo. Enquanto olho pro relógio e me dou conta de que já é quase 2021. Ou enquanto enxugo as lágrimas na toalha fedida com aroma de corpo sujo, cigarro e porre.

Então tudo vira poesia. A dor, o esquecimento, a constatação, o desabafo.

É por causa disso que nós escritores não sucumbimos, não é? Abraçamos caminhos práticos que monetizam nossa palavra, mas no cerne da nossa arte está esse ser humano perdido buscando um bote salva-vidas.

E às vezes me falta fôlego, me falta ar. Como se eu estivesse voltando ao ponto de onde parei. Mesmo que nesse meio-tempo tenha acessado uma lacuna que me fez acreditar que já havia acabado.

Quando acaba? Porque eu sinto que é infinito. E que mesmo quando for velhinha, livros pendurados na estante, prêmios na cabeceira ao lado. Ainda assim, estarei aqui.

Perdida. Buscando sentido. Sangrando pelos dedos. Jorrando pela escrita.

Uau. Quando escrevo, me curo. Com a cabeça enfiada no travesseiro, respiro fundo com a certeza inabalável de que é maior do que eu.

Com a certeza inabalável de que posso me afogar na vida, posso me perder no mar, posso ir pelo mundo sem rumo.

Eu posso me perder. Porque todas as vezes que as coisas deixarem de fazer sentido, eu tenho para onde voltar.

Lembrei agora de como tudo isso começou… Minha casa é o mundo, escrever é o meu lar.

Enquanto escritores sonhamos em ser lidas. Queremos que o mundo se emocione com nossas histórias e palavras. Este é um desejo legítimo. Porém, muitas vezes, tudo o que a alma nos pede é por um lugar seguro para desabar.

Nem todos os meus textos nascem com a pretensão de ser lidos. Às vezes eu quero apenas respirar. Eu quero apenas chorar, sangrar, me curar, respirar. No sentido literal desses verbos.

Sou Flay Alves. Jornalista maranhense, autora de Donas de Si e colunista da Revista AzMina. Oficineira e mentora de mulheres que desejam destravar na escrita e na carreira literária. Escrevo sobre a potência da vida e o encanto de ser gente. Quer percorrer essa jornada comigo? Me acompanhe no insta. :))

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Flay Alves

Escritora e jornalista antirracista, feminista e itinerante. Autora de Donas de Si. Escrevo sobre a potência da vida e o encanto de ser gente. Insta flay.alvess